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Bilhete de Identidade #2: Santos - O clube que cessou guerras

  • Foto do escritor: Mauro Salgueiro Delca
    Mauro Salgueiro Delca
  • 1 de fev. de 2021
  • 6 min de leitura


Na primeira edição do Bilhete de Identidade, o foco recaiu sobre o Athletic Club de Bilbao, um clube altamente político. Hoje, trago-vos algo diferente: o Santos Futebol Clube, vice-campeão da Copa Libertadores 2020. O ‘Peixe’ é a equipa escolhida e, apesar de não se demarcar por uma ideologia fortemente vincada, marca-se pela sua história e pelo papel de pioneiros na estratégia de aliar o futebol com a notoriedade mediática, durante as décadas de 50 e 70. Explico esta teoria nas linhas que se seguem.


Santos Futebol Clube - Breves traços de história

Fundado a 14 de Abril de 1912, o Santos nasceu na cidade homónima, no estado de São Paulo, no Brasil, claro está. A combinação branco/azul/amarelo durou pouco tempo, passando o clube a vestir de branco e preto, cores que ainda hoje são utilizadas.

O seu estádio, o Vila Belmiro, foi inaugurado em 1916 e desde então até hoje é o palco principal dos jogos santistas. Ainda que, obviamente, com ampliações e remodelações ao longo da história, o Vila Belmiro é um dos estádios mais antigos do Brasil, bem como um dos mais icónicos.


O Santos é o quinto maior campeão nacional do seu país, contando com 8 Campeonatos Brasileiros e 1 Taça do Brasil. De resto, convém frisar o domínio do Santos no panorama brasileiro da década de 60, uma vez que cinco dos oito campeonatos conquistados pelo ‘Peixe’ foram disputados entre 1961 e 1965 (pentacampeonato), ainda com o troféu a ser disputado no formato de taça entre os vencedores dos campeonatos estaduais. No que diz respeito ao Campeonato Paulista - estadual de São Paulo - os alvinegros são o terceiro maior vencedor, contando com 22 conquistas em seu nome.

A somar às conquistas nacionais, aliam-se as vitórias na Copa Libertadores em 1962, 1963 e 2011, bem como a posterior Taça Intercontinental nas edições de 1962 e 1963. Ainda que de inferior estatuto, também a Supercopa dos Campeões Intercontinentais (1968), a Supercopa Sul-Americana (1968), a Copa CONMEBOL (1998) e a Recopa Sul-Americana (2012) são taças na vitrine do Santos.


O período áureo do clube é comummente designado como sendo a “Era Pelé”. Destacado por muitos como o melhor jogador de todos os tempos, no mínimo, um dos melhores do seu tempo, Edson Arantes do Nascimento, vulgo Pelé, estreou-se no Santos em 1956 com... 15 anos de idade. Seguiram-se golos, golos e mais golos e um período em que a equipa paulista viajou em torno do mundo qual Cirque du Soleil. Pepe, Zito e Clodoaldo são outros dos craques que figuravam no plantel do Santos entre 1956 e 1974, durante a estadia de Pelé na equipa.

Para termos ideia do domínio santista neste período, basta olhar-se para a lista de vencedores do Campeonato Paulista, no qual o Santos figura por 11 vezes em 18 anos. Neste período, o Santos finalmente alcançou o patamar histórico em que Corinthians, Palmeiras e São Paulo (seus maiores rivais) já se encontravam. Mais à frente, aprofundamos a escrita em relação à “Era Pelé”.


O período pós-Pelé foi marcado por um ligeiro decréscimo nas conquistas do Santos. Ainda assim, o ‘Peixe’ continuou a ser uma das equipas mais excitantes do Brasil. Isto porque, se antes havia a ‘SeleSantos’ - alcunha dada ao Santos por colocar um grande número de jogadores na selecção -, em 1978 chegaram os ‘Meninos da Vila’, uma geração jovem encabeçada pelo depois portista Juary, que se batia a ferros com o Flamengo de Zico.


Contudo, se os primeiros ‘Meninos da Vila’ elevaram a fasquia para os jovens jogadores que chegavam ao Santos ou que subiam à equipa principal, a geração dos meninos de 2009 ultrapassaram-na. Ganso e Neymar encabeçavam a equipa, que ainda era composta por nomes mais experientes como o de Arouca e Robinho. Foi com os alicerces dessa equipa que o Santos conquistou a Copa do Brasil em 2010 e a sua terceira Libertadores (sem Robinho, mas com Elano) em 2011.


Santos Futebol Clube - Os ‘Globetrotters’ do futebol

Entre as décadas de 1950 e 1970, o Santos Futebol Clube desempenhou um papel como, até então, nenhum outro clube havia desempenhado. E, a bom rigor, como nenhum viria a desempenhar. O ‘Santástico’, como era conhecido no Brasil e, a pouco e pouco, fora do Brasil também, com as conquistas de uma ‘Canarinha’ muito alvinegra - 1958 e 1962 - a darem o mote para a popularização da equipa, tornou-se requisitado pelo mundo fora.

Já desde cedo na sua história, o Santos se destacou como sendo um clube mais aberto à realização de jogos amigáveis internacionais. Porém, com essa requisição internacional, os Santos tornaram-se nuns verdadeiros ‘Globetrotters’ do futebol mundial. Contextualizando, os Harlem Globetrotters são uma equipa exibicionista de basquetebol que viaja o mundo, no formato de tour, jogando partidas amigáveis contra equipas e seleções. Os seus jogos são uma atração, sobretudo, pela sua típica mistura de comédia, teatralização e atletismo.


Torna-se fácil entender a comparação. O estilo de jogo do Santos, tipicamente “brinca na areia” tinha todos os ingredientes que o justificassem. De facto, antes de Pelé e Clodoaldo, antes do ‘Santástico’, já o Santos Futebol Clube vinha a ser seduzido pelas digressões internacionais. Em 1938, os paulistas foram convidados e só por questões financeiras não foi marcada uma primeira digressão santista no México, segundo artigo de Gabriel Santana no site do próprio clube.

Mas a chegada do marketing e dos amigáveis de sonho ao panorama futebolístico viriam a convencer o Santos da aposta. A Hungaria do goleador-refugiado Laszlo Kubala (1950) e o ‘Match Of The Century’, entre Inglaterra e Hungria (1953) terão sido exemplos positivos da importância crescente do marketing no desporto, essenciais para que o Santos apostasse no formato de tour. O facto de o Campeonato Brasileiro, então, não ter um calendário tão extenso como na actualidade, mesmo com os Estaduais, foi outro impulsionador.


Não existem registos verdadeiramente oficiais, ou, pelo menos, a multiplicidade de registos, torna impossível a verificação dos factos. Ainda assim, o site acervosantosfc.com confirma a ocorrência de jogos internacionais amigáveis do Santos em 75 países, durante o período referido. Em Portugal, o clube defrontou Os Belenenses, o Sport Lisboa e Benfica, o Sporting Clube de Portugal e ainda o Vitória Futebol Clube (Setúbal), mas as suas viagens estenderam-se por todos os pontos do globo, desde as Antilhas Holandesas, ao Sudão ou ao Irão.

E desengane-se quem pensa que os jogos amigáveis opunham apenas o Santos a outros clubes. As partidas entre clubes e selecções eram mais comuns na altura do que actualmente (ainda existem) e, ao todo, o Santos enfrentou... 42! E se é um facto que o Santos teve embates com potências mundiais como a selecção da União Soviética, também não é menos verdade que países como a Malásia, os paulistas enfrentaram a sua selecção de Sub-23. Pelé marcou 1279 golos em toda a sua carreira... e não diminuindo o feito... dá para perceber porquê.


Santos Futebol Clube - O clube que cessou guerras

O título não é hipérbole. A grandeza do Santos atingiu o seu auge durante as suas digressões mundiais. Falamos de um clube que, a 4 de julho de 1961, no Estádio Apostolos Nikolaidis, em Atenas, na Grécia, foi derrotado por 2-1 pelo Olympiacos. Desde então, no hino do maior clube grego e um dos mais titulados da Europa pode ouvir-se algo como “(...)Eles tremem quando ouvem o seu nome: Olympiacos! / Eles ainda lembram do seu nome... o Santos de Pelé!” Um clube com 45 títulos nacionais e quatro campeões europeus considera que a sua maior proeza foi ganhar um amigável, por um golo de diferença e em casa, a uma equipa brasileira.


Voltando ao título: tudo se passou em fevereiro de 1969. Pelé era, inquestionavelmente, a maior figura do futebol mundial e o Santos vinha de recém-coroação na Supercopa dos Campeões Intercontinentais. Não é descabido afirmar que se tratava do maior clube do mundo, à altura. Como tal, uma digressão por África foi altamente badalada. O continente, tal como ainda hoje, era então fustigado por crises políticas e guerras civis.

O Congo e a Nigéria, apenas separados pelos Camarões, são exemplos de dois países que viviam essa instabilidade... e onde o Santos teve encontros marcados. Para realização desses encontros, o Rio Congo teve de ser atravessado. Acontece que o Rio Congo era palco de guerra e a sua travessia era altamente condicionada pelo governo de Brazzaville. Mas a caravana santista não ficou retida, nem teve que contornar o rio, tendo sido autorizada a sua travessia após um cessar-fogo temporário que o permitisse.


Na Nigéria, a 4 de fevereiro, contudo, deu-se o episódio mais famoso e também o mais debatido. O país africano vivia o pico de uma guerra civil (1967-1970) provocada pela emancipação da região do Biafra. John Lennon, Jimi Hendrix e o papa Paulo VI, todos tentaram pôr fim ao conflito, sem sucesso. Já o Santos, sem encontro marcado na Nigéria, foi levado para o país para disputar um amigável de recurso em Benin City, alegadamente, sem a equipa ter conhecimento da situação que o país atravessava, reagindo com espanto à afirmação «Vocês vão parar uma guerra.»

Segundo relatos do Santos Futebol Clube, o estado nigeriano ordenou o cessar-fogo durante a passagem do ‘Peixe’ por terras de batalha. A partida, que era o que menos interessada, foi ganha pelo Santos (2-1) e o regresso ao hotel foi feito de forma tranquila. No dia seguinte, os alvinegros abandonaram a Nigéria... e a guerra prosseguiu.

Contudo, o relato é disputado afincadamente por José Paulo Florenzano, antropólogo, que justifica que Benin City não era, sequer, uma zona de conflito na altura, ao contrário de outros pontos da Nigéria. Segundo o mesmo, o conflito continuou simultaneamente noutras zonas geográficas e a presença do Santos no país foi mesmo uma arma de propaganda por parte do governo militar da Nigéria contra os guerrilheiros do Biafra.


Não sabemos, ao certo, qual foi a verdade exacta relativa à presença do Santos em solo nigeriano. Contudo, o cessar-fogo no Rio Congo parece facto indisputável.

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